Quantos mergulhos cabem em um rio?
No processo de criação do artista Genivaldo Amorim, o ato de mergulhar pode ser um gesto contínuo compreendido como uma imersão total na água, pela relação intensa de aprofundar seus trabalhos em deslocamentos que se findam ou se diluem em novos processos, em que poé8cas visuais alcançam beiradas e lugares profundos.
Na exposição apresentada no Parque do Engenho Central os bichos d’água do artista se conectam com a compreensão do rio enquanto paisagem mutável. Em sua troca de pele, nos conduz a uma corrente de água, onde narrativas entram em precipitações que desenham texturas de uma natureza construída por seres imaginários. Seria a lenda presente neste rio que toca a cidade? Reza a lenda que o rio Piracicaba era calmo sem corredeiras. Às suas margens, moravam pescadores brancos e índios. Viviam em paz até aparecer uma jovem de cabelos longos surgida das águas. Certa manhã, a povoação de Piracicaba acordou assustada com o sumiço do filho de um dos pescadores. Procuraram em toda parte e não o encontraram. Observaram que o rio ganhara uma precipitação, uma cachoeira enorme. Era a força de um rio, enciumado com o amor da moça pelo belo rapaz. Desafiados, rio e homem lutaram pela mulher, que ficara prisioneira no fundo das águas. O rio venceu e ganhou a cor barrenta, que simboliza o “trigueiro do corpo do rapaz” 1, aparência de rios de doce de leite. Memória de uma infância.
Nas precipitações da água, o rio reage sempre e manda avisos: Cuidado! Perigo! Todo mergulho tem seus riscos, e ao adentrar no segundo ambiente expositivo as caravelas se aproximam e são sempre perigosas, basta olhar para os apagamentos existentes em nossa história, onde povos, culturas, lugares e rios foram aterrados. É certo que a natureza, em sua luta pela sobrevivência, também criou caravelas que ardem e queimam, apontando constantemente suas fragilidades e seus limites. A pisada assim, não é um convite ao toque, mas um alerta! A natureza ainda se defende em suas beiradas com os ouriços do mar ou com arraias de um rio presente na infância do artista. Em suas profundezas defende-se com as toxinas de peçonhas. Nestas beiradas e lugares profundos, quantos mergulhos cabem em um rio?
Heldilene Reale
Curadora
Texto para a exposição “Andanças por terras estranhas” – Engenho Central, Piracicaba SP
Agosto de 2023
1 Antologia do Folclore Paulista, Editora Literart, 1959.