O corpo/lugar em Genivaldo Amorim

O primeiro contato que tive com Genivaldo Amorim ocorreu em 2017, quando estava como gestora do Museu de Arte Contemporânea Casa das Onze Janelas, em Belém do Pará. Naquele período pairava sobre o Museu uma constante ameaça do Governo do Estado em querer transformá-lo no Museu da Gastronomia Paraense. Para evitar o desmonte do espaço, uma complexa estratégia de ocupações foram mobilizadas, dentre estas, um movimento artístico, local e nacional, denominado “Movimento Casa das Onze Janelas”, que tinha como lema: “Arte é Alimento”. Dentre as inúmeras propostas que foram encaminhadas naquele ano ao Museu, recebemos o projeto expositivo de Genivaldo, que, pela dimensão do trabalho, preencheria a maior galeria do lugar. Ocupar a pauta do espaço com obras do acervo, e propostas de artistas locais e nacionais, reafirmava a importância da permanência do Museu, mesmo em meio à crise estratégica do governo, que disseminou o abandono financeiro e estrutural.

Genivaldo Amorim expôs a instalação “Bicho de corpo mole, mas de pele boa”, título extenso e profundo como os trabalhos do artista. Os bichos em flutuantes corpos, se balançavam no sutil vento que corria na sala expositiva, e mexiam a estrutura de um lugar que estava sendo corroído por uma “bactéria” de interesses capitalistas. Na Amazônia Paraense os bichos também são alimento, o tapuru é um exemplo deles. Uma larva de besouro que se desenvolve no interior do coco-babaçu ou em caules de árvores caídas. Alimento com alto teor de proteína, consumido pelos povos originários e também por guerreiros da selva em situações de sobrevivência. Não tenho dúvida de que naquele momento os bichos instalados pelo artista no Museu Casa das Onze Janelas contribuíram para que o espaço continuasse se alimentando e sobrevivendo. O espaço consumiu os “tapurus” que Genivaldo trouxera. “Arte é Alimento”!

Neste trabalho e em tantos outros desenvolvidos pelo artista, a cor vermelha, impregnada em sua estética, sangra, derrama e nos atravessa. A liberdade de seu pensamento artístico em não desperdiçar uma ideia, desloca continuamente a produção de Genivaldo em temas diversos conectados com o Brasil e com o mundo. Sua trajetória iniciada com a pintura nos anos de 1990, se expande em várias outras materialidades nos anos 2000, quando a pintura se conecta a gravuras, esculturas, instalações, objetos, vídeos, multilinguagens presentes em seus processos. O artista em seu flâneur poético, atento aos elementos observados em suas vivências, coleta e investiga materiais trazidos ao seu ateliê e conduz seus experimentos na produção de novos corpos, que se desdobram em outros. Um exercício de observar, refletir, produzir, desfazer, refazer… Em Genivaldo, a série é um processo que se finda ou se dilui em novos processos, onde a materialidade e a desmaterialidade que formam suas poéticas acendem a permanente preocupação ecológica que o artista tem na idealização de seus trabalhos.

Uma das características presentes em seu fazer é pensar em como tocar a experiência de suas obras para além dos espaços institucionalizados onde já expôs, construindo relações com pessoas em novos espaços. Algo que se conecta com o seu ser artista politizado, que se questiona e questiona o próprio circuito da arte. Nas práticas de Genivaldo, alcançar o outro que não circula nos “circuitos” é também construção. Assim, Amorim por meio de sua sensibilidade, acessa para além das paredes institucionais o corpo que literalmente mora na urbe. A arte urbana do artista viraliza do micro ao macro, espaços e pessoas antes não habitados por obras, começam a ser ocupados. No corpo/cidade surgem seus organismos vivos que craquelam as calçadas e muros de concretos existentes nos contornos da arte contemporânea.

Ainda que um dos desejos do artista seja que o peso do seu corpo esteja no lugar mais profundo do planeta, aderido na escultura de um repouso eterno, acredito que Genivaldo já alcançou o mais profundo gesto de ser artista: ser um artista andarilho em terras estranhas. Ao unir o peso de seu corpo com o corpo do outro em uma veste/obra, desloca corpos coletivos e torna possível um corpo-artista estar em todas as partes do mundo. Seja em lugares extremamente visibilizados pela indústria do turismo ou em lugares que correm riscos de serem apagados por atos desumanos que impactam o meio ambiente. Em Genivaldo Amorim o ser artista também é corpo/lugar atravessado por água, suspenso no espaço, encapsulado, encaixotado, à deriva, vendido na feira, é carne viva ou violentada, “que normalmente, comumente, fatalmente, felizmente, displicentemente o nervo se contrai”1

 

Heldilene Reale
Curadora, pesquisadora, artista e professora
2023

 

1 Trecho da Música “Vila do Sossego” de Zé Ramalho, 1978.