Espécies Nativas – Genivaldo Amorim e Jorge Dias

Na exposição de Genivaldo Amorim e Jorge Dias no Parque Municipal Monsenhor Bruno Nardini em Valinhos São Paulo, substantivo e adjetivo se articulam para projetar desde a arte contemporânea os tensionamentos espaciais e conceituais que caracterizam as pesquisas e construções artísticas atuais.

ESPÉCIES se transfigura em realidade e metáforas que circulam pela presencia literal da matéria, das simetrias/assimetrias, pelos deslocamentos funcionais e espaciais, e pelas projeções associadas a outras áreas do conhecimento como a Biologia, Física, Arquitetura, Sociologia e a História por exemplo. Assim já reverbera a qualidade autoral de Amorim e Dias ao explorar desde as Artes Visuais a interdisciplinaridade.

NATIVAS pode nos induzir à semântica da localização, mas aqui essa pontualidade cartográfica irradia, também,  em oscilações e aproximações de um lugar comum, que a própria ação do homem provocou uma violenta diluição – África & América do Sul, especificamente Moçambique & Brasil. No entanto se conjuga, intensifica e mobiliza este ponto de reflexão possível com as potencias, intensidades e forças visuais que se engendram a partir de uma conjuntura cíclica das pesquisas formais e conceituais dos dois artistas visuais; sugerindo a procura no espectador de ‘respostas daquilo que procuramos permanentemente’ como pontua Dias[1]

As Espécies Nativas aqui surgem e se projetam nos processos de apropriações, em hibridações formais, conceituais e espaciais que hetereotopicamente emergem como manifestos visuais a partir dos embates permanentes dos artistas com a matéria, as parcerias, os contextos, com a sociedade.

As instalações de Genivaldo Amorim evocam alfabetos onde sujeito e objeto se diluem em definições potencialmente inconclusas pela transitoriedade/maleabilidade das alusões, as emanações conceituais que emergem das tentativas do artista de reconfigurar arquétipos nas suas construções visuais.  As Caravelas são sempre perigosas (2022) é um exemplo disso. Na instalação se exaltam em apontamentos associativos/temporais à dualidade agressividade & vulnerabilidade entre as espécies vivas ao radiografar categorias como vazio/cheio/transparência/disposição espacial/cor, que remetem às Águas vivas e às Caravelas dos traficantes de escravos (onde teve origem a aventura do “abismo” que aponta Glissant). Esses apontamentos referenciais são reforçados sensorialmente pela disposição espacial da instalação, acentuada pelas relações entre cada peça particular para reforçar e estruturar visualmente o conjunto como um todo: composição, espacialidade, cromatismo. A insistência e permanência da cor vermelha acentua a vulnerabilidade na literalidade interpretativa ao mesmo tempo que reforça as relações com o espaço arquitetônico e desenham níveis de assimilação crítica a partir das Artes Visuais.

Peçonhas (2022) é derivada de outra instalação, Bicho de corpo mole, mas de pele boa (2015-2021). A instalação, além de patentear o colocado acima, reforça particularidades da pesquisa de Amorim ao se encaixar “perfeitamente dentro da lógica da pesquisa que estou fazendo (e completamente obcecado por isso), que é a questão do uso da usabilidade, da função primária, de objetos comuns transformados em obras de arte”.  Cada uma das peças que a compõem funciona como aparelhos particulares para inocular interrogantes plurais: cor (vermelho recorrente e associativo), grafismos, cartografias, verticalidade pulsante, insistência exoesquelética para tentar forçar e provocar suntuosidade espacial irregular.  Assim transformar, adequar aos contextos, dar mobilidade delineando itinerários subjetivos flexíveis em concordância com o nível de representação das questões abordadas e sua expressão artística no contexto cultural.

Na sua cobertura fonética a instalação Casulos (2022)  de Dias aponta para a concretude material do encontro, da descoberta, da construção in situ e a devolução transitória dos materiais coletados à continuidade pautada de funções a partir de formas, volumes, materiais remontados que evidenciam que a criação artística do artista moçambicano é pautada pelo permanente recomeço. Com a dermes e hipodermes aparentes construídas de camadas viscerais com materiais coletados do embate do artista com o entorno e o espaço arquitetônico onde é exposta a instalação. Tecidos, plásticos, papeis, roupas usadas, sobras industriais, cordas, barbantes, linhas, espuma em diálogos heterogêneos de espacialidade, materialidade e cromatismo. Essas assimetrias remontam a colônias carregadas de informações, contrastes e encontros que ativam o diálogo entre todos os agentes artísticos contemporâneos. Destaque para os tensionamentos que ativam nos espectadores a partir da inserção no espaço arquitetônico. Assim a epidermes que revestirá cada casulo e/ou conjunto deles é concebida subjetivamente pelos espectadores.

A instalação Fluxos:  Linhas e cores (2022)  acentua as relações do resgatado em diálogos com o espaço arquitetônico. Aqui as linhas desenham inúmeros percursos para demarcar a flutuação dos trajetos que levam as bolas.    Construções assimétricas que sensorialmente evocam a busca pela continuidade e rupturas com a literalidade racional para se expandir, como as linhas, como teias em construção, desde a mobilidade sugerida das linhas à densidade estrutural das bolas ou vice-versa. O artista com a instalação prioriza a pluralidade discursiva de sua pesquisa pautada e estruturada nas tensões entre os materiais disponíveis, na disposição recorrente dos mesmos, as especificidades cartográficas deles em diálogos associativos e tensionadores com as particularidades do espaço arquitetônico.

As Caravelas são sempre perigosas, Peçonha do artista brasileiro e Casulos e Fluxos:  Linhas e cores, do artista moçambicano, arquitetam manifestos visuais já na nomenclatura que identifica cada instalação. E avigoram a pluralidade discursiva nas Artes Visuais, pautadas pelos embates particulares e as associações críticas ao conjunto de obras de arte na exposição. Por exemplo as aproximações e desenlace com os postulados de Édouard Glissant (Martinica 1928 – França 2011), de Relação e de Rizoma, respectivamente, salvando evidentemente espaço, tempo e associando os conceitos às pesquisas dos dois artistas contemporâneos.  Relação traduzida à implicação a uma conexão vital, tensa, tortuosa, feita de negações e associações, esquecimentos, fertilizações mútuas; transformar os envolvidos em atores de uma obra que uma vez executada se perde o controle sobre a mesma, deixando-os permanentemente insatisfeitos[2] . Ao mesmo tempo que há atmosfera mágica, onde convivem o visível e o invisível, a metáfora como pretexto para explorar especificidades do tempo, do espaço, da matéria, do corpóreo/cromático/incisivo projetadas como manifestos visuais onde se intensificam as artérias estéticas. Identidade diluída a partir de um modelo rizomático, no qual reconhecemos em cada construção múltiplas raízes indo ao encontro/embate de outras raízes.  Raízes aqui como obras de arte construídas e pulverizadas sensorialmente. Obras que pautam no arcabouço das poéticas dos artistas, onde há o comprometimento dos mesmos com as problemáticas sociais, corroborando o posicionamento de Glissant que “o artista é quem aproxima o imaginário do mundo, e quando as ideologias do mundo, suas visões, suas prefigurações, os castelos no ar que ele ergue desabam, é preciso voltar a levantar esse imaginário. Não se trata de sonhar no mundo, mas de intervir”.[3]

Por fim o projeto se articula de degraus dos processos de criação artística de Genivaldo Amorim[4] e Jorge Dias[5], de suas convicções e modos de agir no cotidiano como artistas e seres humanos potencializando a interdisciplinaridade e a instrução como ferramenta primordial no desenvolvimento cultural da humanidade.

 

PhD Andrés I. M. Hernández
Curador – São Paulo, inverno de 2022

 

 

[1] Ver no YOUTUBE https://www.youtube.com/watch?v=6FF43MJ-JgI acesso 1 de julho 2022 às 15h.
[2] Ver GLISSANT, Édouard. El discurso antillano. Fondo Editorial Casa de las Américas, 2010. Havana Cuba.
[3] GLISSANT, Édouard: Introducción a una poética de lo diverso, Barcelona, Ediciones del Bronce, 2002. p.58 Tradução nossa
[4] Ver o projeto Ocupe.Arte. https://ocupearte.com.br/ocupe-arte-valinhos/
[5] BANDEIRA DE BRITO, Isa Marcia. Movimento de Arte Contemporânea de Moçambique MUVART: 2004 a 2010. Dissertação de Mestrado. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/93/93131/tde-29052012-162146/pt-br.php.